A história dos índios no Ceará é marcada por um intenso processo de lutas e resistências. Lutas contra as invasões que desde o início do século XVII tentam expulsá-los de seus territórios tradicionais. Resistências contra as tentativas de negação de suas existências e culturas. Após décadas de invisibilidade, ressurgem no final da década de 1970 e, mobilizados politicamente em torno do reconhecimento de suas identidades étnicas, retomam a luta de seus ancestrais por terra, reconhecimento étnico-cultural e dignidade.
No ano passado, ouvimos atônitos notícias semelhantes às pronunciadas nos meados do século XIX, de que no Ceará não haviam mais povos nativos. Afirmavam, na ocasião, que os Jenipapo-Kanindé da Lagoa da Encantada, município de Aquiraz, não eram índios, mas invenções de intelectuais e organizações não-governamentais. Agora, o velho discurso etnocêntrico, preconceituoso, estereotipado e sem fundamentação cientifica, histórica e/ou antropológica tenta negar a presença dos Tremembé, um dos primeiros grupos a levantar a bandeira da etnicidade no Ceará, e que constam em relatos históricos como moradores do litoral norte do estado desde, pelo menos, o século XVII.
Que interesses estão por trás da negação da etnicidade dos índios no Ceará?
Não foi à toa que a última assembléia indígena no Ceará foi realizada no município de Itapipoca, na aldeia São José e Buriti, em novembro de 2007. A situação em Itapipoca é conhecida: diversas denúncias feitas por moradores afirmam a situação de tensão e medo que paira no ar, por conta destas disputas territoriais, estimuladas por interesses de grupos estrangeiros aliados às elites locais.
Não é de se estranhar que o mesmo estado que negou a existência de índios no Ceará durante toda a segunda metade do século XIX, venha hoje apoiar empreendimentos, mais uma vez europeus, como a empresa colonizadora da ‘modernidade’ dos séculos XVI, XVII e XVIII. Empreendimentos que, mais uma vez, têm na apropriação da terra e na utilização de nativos como mão de obra barata sua lógica, sob a justificativa de que trarão o famigerado ‘progresso’ e 'desenvolvimento'.
No alvorecer da modernidade discutia-se se os índios tinham alma, se eram gente, pois se não o fossem, poderiam ser escravizados e ter suas terras legitimamente apossadas pelos invasores. Hoje, a justificativa de que as populações tradicionais não são indígenas bastam para sua expulsão dos locais onde vivem há várias gerações.
Concomitantemente à construção deste discurso, as elites locais impõem à sociedade cearense um projeto de modernização capitalista que está modificando completamente sua paisagem, com a construção de uma complexa infra-estrutura que visa possibilitar a imersão efetiva do estado nas malhas do neoliberalismo capitalista mundializado. Sob a capa do velho discurso do progresso, prometem emprego e desenvolvimento. Na verdade, um projeto de desenvolvimento nitidamente elitista e concentrador de renda, insustentável, explorador de recursos humanos e naturais com fortes impactos no modo de vida das populações indígenas e tradicionais, tanto do sertão quanto do litoral.
A problemática da etnicidade no Ceará coloca-se cada vez como um fator mais complexo no contexto das relações político-econômicas locais e externas. A agressiva especulação imobiliária avança Ceará adentro sem nenhuma preocupação com os impactos sócio-ambientais por ela ocasionada. O que importa nestes casos é saber se o Estado concede meios legais e estruturais para receber os recursos internacionais tão sonhados pelas elites industriais e agrárias locais, em outras palavras, se está apto para incorporar-se definitivamente ao projeto de modernização capitalista.
Fica bem claro, nas matérias veiculadas na mídia impressa local e nas falas dos políticos que estiveram em Itapipoca recentemente, de que lado eles estão e que interesses estão defendendo em sua atuação nos cargos para os quais foram eleitos.
Não é de assustar que mais uma vez uma grande empresa, desta vez apoiada pela grande mídia e pelo Governo Estadual, venha a negar a existência de povos indígenas no Ceará. Afinal de contas, a existência de populações indígenas organizadas emperram o projeto político e econômico em curso, pois pressupõe a existência de terras tradicionais por eles habitadas, que não podem ser vendidas quiçá roubadas, por quem quer que seja, uma vez que estão protegidas por lei federal desde 1988.
As comunidades indígenas organizadas no Ceará, que totalizam cerca de doze etnias e mais de 20 agrupamentos, afirmam sua etnicidade e se mobilizam pelo reconhecimento e demarcação de suas terras. É imprescindível denunciarmos a falsidade deste discurso ancorado em declarações infundadas, baseadas numa visão estereotipada há tanto ultrapassada, de que não existem mais índios no Ceará, ou de que os índios que existem na região de Itapipoca se travestem a partir de invenções de intelectuais e organizações não-governamentais.
Resta-nos, antes de tudo, um posicionamento. Desmascarar estas afirmações e apoiar mais uma vez a luta destes povos, dando visibilidade às suas ações políticas e o apoio jurídico e científico necessários à demarcação definitiva de seus territórios. Tornamos nossa a consigna dos índios no Ceará: NÃO NOS VENDEMOS NEM NOS RENDEMOS!
Alexandre Gomes e João Paulo Vieira, historiadores e integrantes do Projeto Historiando*
*O Projeto Historiando realiza um programa de educação patrimonial em comunidades étnicas no Ceará, apoiando a criação de museus indígenas que atuem como espaços de formação, mobilização e organização comunitária.
No ano passado, ouvimos atônitos notícias semelhantes às pronunciadas nos meados do século XIX, de que no Ceará não haviam mais povos nativos. Afirmavam, na ocasião, que os Jenipapo-Kanindé da Lagoa da Encantada, município de Aquiraz, não eram índios, mas invenções de intelectuais e organizações não-governamentais. Agora, o velho discurso etnocêntrico, preconceituoso, estereotipado e sem fundamentação cientifica, histórica e/ou antropológica tenta negar a presença dos Tremembé, um dos primeiros grupos a levantar a bandeira da etnicidade no Ceará, e que constam em relatos históricos como moradores do litoral norte do estado desde, pelo menos, o século XVII.
Que interesses estão por trás da negação da etnicidade dos índios no Ceará?
Não foi à toa que a última assembléia indígena no Ceará foi realizada no município de Itapipoca, na aldeia São José e Buriti, em novembro de 2007. A situação em Itapipoca é conhecida: diversas denúncias feitas por moradores afirmam a situação de tensão e medo que paira no ar, por conta destas disputas territoriais, estimuladas por interesses de grupos estrangeiros aliados às elites locais.
Não é de se estranhar que o mesmo estado que negou a existência de índios no Ceará durante toda a segunda metade do século XIX, venha hoje apoiar empreendimentos, mais uma vez europeus, como a empresa colonizadora da ‘modernidade’ dos séculos XVI, XVII e XVIII. Empreendimentos que, mais uma vez, têm na apropriação da terra e na utilização de nativos como mão de obra barata sua lógica, sob a justificativa de que trarão o famigerado ‘progresso’ e 'desenvolvimento'.
No alvorecer da modernidade discutia-se se os índios tinham alma, se eram gente, pois se não o fossem, poderiam ser escravizados e ter suas terras legitimamente apossadas pelos invasores. Hoje, a justificativa de que as populações tradicionais não são indígenas bastam para sua expulsão dos locais onde vivem há várias gerações.
Concomitantemente à construção deste discurso, as elites locais impõem à sociedade cearense um projeto de modernização capitalista que está modificando completamente sua paisagem, com a construção de uma complexa infra-estrutura que visa possibilitar a imersão efetiva do estado nas malhas do neoliberalismo capitalista mundializado. Sob a capa do velho discurso do progresso, prometem emprego e desenvolvimento. Na verdade, um projeto de desenvolvimento nitidamente elitista e concentrador de renda, insustentável, explorador de recursos humanos e naturais com fortes impactos no modo de vida das populações indígenas e tradicionais, tanto do sertão quanto do litoral.
A problemática da etnicidade no Ceará coloca-se cada vez como um fator mais complexo no contexto das relações político-econômicas locais e externas. A agressiva especulação imobiliária avança Ceará adentro sem nenhuma preocupação com os impactos sócio-ambientais por ela ocasionada. O que importa nestes casos é saber se o Estado concede meios legais e estruturais para receber os recursos internacionais tão sonhados pelas elites industriais e agrárias locais, em outras palavras, se está apto para incorporar-se definitivamente ao projeto de modernização capitalista.
Fica bem claro, nas matérias veiculadas na mídia impressa local e nas falas dos políticos que estiveram em Itapipoca recentemente, de que lado eles estão e que interesses estão defendendo em sua atuação nos cargos para os quais foram eleitos.
Não é de assustar que mais uma vez uma grande empresa, desta vez apoiada pela grande mídia e pelo Governo Estadual, venha a negar a existência de povos indígenas no Ceará. Afinal de contas, a existência de populações indígenas organizadas emperram o projeto político e econômico em curso, pois pressupõe a existência de terras tradicionais por eles habitadas, que não podem ser vendidas quiçá roubadas, por quem quer que seja, uma vez que estão protegidas por lei federal desde 1988.
As comunidades indígenas organizadas no Ceará, que totalizam cerca de doze etnias e mais de 20 agrupamentos, afirmam sua etnicidade e se mobilizam pelo reconhecimento e demarcação de suas terras. É imprescindível denunciarmos a falsidade deste discurso ancorado em declarações infundadas, baseadas numa visão estereotipada há tanto ultrapassada, de que não existem mais índios no Ceará, ou de que os índios que existem na região de Itapipoca se travestem a partir de invenções de intelectuais e organizações não-governamentais.
Resta-nos, antes de tudo, um posicionamento. Desmascarar estas afirmações e apoiar mais uma vez a luta destes povos, dando visibilidade às suas ações políticas e o apoio jurídico e científico necessários à demarcação definitiva de seus territórios. Tornamos nossa a consigna dos índios no Ceará: NÃO NOS VENDEMOS NEM NOS RENDEMOS!
Alexandre Gomes e João Paulo Vieira, historiadores e integrantes do Projeto Historiando*
*O Projeto Historiando realiza um programa de educação patrimonial em comunidades étnicas no Ceará, apoiando a criação de museus indígenas que atuem como espaços de formação, mobilização e organização comunitária.
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