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A brincadeira do coco no Ceará: um estudo dos saberes, das performances e dos rituais.

Artigo apresentado no XIII Congresso Brasileiro de Folclore
GT - 10 - Danças e Festas Populares

Realizado em Fortaleza-CE, entre 18 e 22 de Setembro de 2007.


Ninno Amorim(1)

Palavras chave: coco – cultura popular – dança

Este texto procura interpretar a brincadeira do coco como uma manifestação cultural praticada no litoral do Ceará. Os grupos aqui estudados moram nos distritos de Jacaúna(2) (Iguape) e de Balbino, situados nos municípios de Aquiraz e Cascavel, respectivamente.

Tendo em vista a grande variedade de classificações atribuídas ao coco (coco de Helena, de ganzá, sapateado etc.), limito-me, por enquanto, a designar essa prática cultural com o termo coco, que neste texto tem um sentido mais genérico, compreendendo a brincadeira de um modo geral.

A brincadeira do coco: música, canto, dança e poesia oral

A manifestação cultural denominada “coco” pode ser encontrada, praticamente, em todo o litoral do nordeste brasileiro. Segundo o folclorista Edison Carneiro (1982: 71-3), sua origem remonta aos tempos da chegada dos primeiros africanos(3) ao Brasil, oriundos, em sua maioria, das regiões que hoje constituem Congo e Angola, nos meados do séc. XVI.

Carneiro relata que muitos desses grupos de escravos se reuniam nos intervalos da difícil lida diária para tocar seus tambores, cantar e dançar em lembrança da “Mãe África”. Daquelas “festas”(4), acredita o autor, surgiram brincadeiras como o jongo, o samba, o lundu, o coco etc., de acordo com as apropriações e sentidos dados pelos seus brincantes nas mais diferentes regiões onde são praticados (Idem).

Naquele período, tais manifestações culturais não tinham seus nomes específicos como são conhecidos hoje. Por serem praticadas pelos africanos no Brasil, foram chamadas durante muito tempo pelos “não-africanos” – viajantes, missionários, senhores de escravos etc. – de batuque, que é uma alusão ao toque dos tambores.

Um dos termos usado à época pelos descendentes de Congo e de Angola para as danças realizadas em círculo era semba que, segundo os cronistas da época, significa “umbigada”. O uso de instrumentos de percussão (ganzá, bumbo, caixa), a dança com umbigada, o canto com a resposta de um coro por parte dos dançadores etc., são alguns dos argumentos usados em prol da crença na “origem” africana dos cocos e de outras tradições (ANDRADE, 1984; AYALA & AYALA, 2000).

O coco, como é praticado atualmente, apesar das variações existentes entre os grupos, mantém a organização em círculo(5), o uso da “umbigada” para convidar outra pessoa à dança(6) e o coro que responde ao refrão puxado pelo mestre. A brincadeira acontece em torno dos instrumentistas – tocadores e cantadores – que ficam num canto, enquanto as demais pessoas posicionam-se ao seu lado. No centro da roda, um brincante ou um par de brincantes – dependendo do lugar onde acontece – desenvolve a sua performance.

Os estudiosos do coco dividem-no, basicamente, em dois tipos: o cantado, muito parecido com o repente feito com viola, e o dançado (AYALA & AYALA, 2000). O primeiro é praticado por dois emboladores, geralmente com um pandeiro cada, que se desafiam nos versos improvisados em praça pública, objetivando angariar algum dinheiro com seu desempenho. O segundo só pode ser praticado por uma coletividade, dadas às especificidades de dançar, bater palmas e cantar o coro, que são exigidas nesta modalidade de coco.

No Ceará, predomina o coco do tipo dançado. Nas duas formas de coco a estrutura das letras cantadas é formada por um refrão fixo, que é repetido pelos brincantes, e uma parte composta por versos livres (estrofes), que depende da criatividade e memória do coquista(7).

Essa estrutura guarda semelhanças com outras brincadeiras encontradas por todo o país. Mário de Andrade considera essas manifestações como pertencentes à “cultura popular” e as chama de “cantos orquéstricos, em que a música, a poesia e a dança vivem intimamente ligadas” (ANDRADE apud AYALA & AYALA, 2000).

É possível encontrar emboladores de coco no Ceará, seja na Praça José de Alencar (centro da Capital) ou na feira do Crato (no Cariri), mas, em relação a outros estados como Pernambuco e Paraíba, não se trata de uma cena muito comum.

A designação “coco” é algo que não se sabe ao certo quando passou a ser utilizada. De fato, não pretendo encontrar as origens de tal prática cultural num passado longínquo. Procuro, antes, compreender como aquelas manifestações – praticadas nas senzalas, nos quilombos e nas aldeias – foram, de algum modo, incorporadas pelos grupos sociais que habitam atualmente o litoral do Estado do Ceará.

E nesse processo histórico de “incorporação” busco verificar, também, as associações daquelas experiências com outras práticas vivenciadas por essas pessoas nos tempos atuais.

Os brincantes de coco têm suas próprias explicações sobre “as origens” da brincadeira. Alguns pescadores disseram-me que os primeiros cantadores de coco ficavam “inventando versos em cima da hora”, durante a jornada diária de trabalho. Esses trabalhadores passavam o dia colhendo coco nos imensos coqueirais, existentes em quase todo o litoral do nordeste brasileiro: o dia para “catar coco” e a noite para “cantar coco”.

Quando era noite, as pessoas se reuniam para dançar os batuques. Aqueles que tinham ouvido as canções improvisadas lá no local de trabalho – canções estas que geralmente remetiam a alguma pilhéria com os patrões ou com os próprios pares – pediam aos improvisadores que cantassem “aquela lá [que foi cantada durante a colheita] do coco”.

Por aglutinação, a frase foi diminuindo e se transformando de “canta aquela lá do coco” em “canta o coco”. Ouvi essa história de um mestre de coco no distrito de Forte Velho, município de Santa Rita, no litoral norte paraibano. A mesma história me foi confirmada, com algumas variações, por outras pessoas nos litorais paraibano e pernambucano.

Em Iguape, no litoral leste do Ceará, tomei conhecimento de outras versões: Klévia, presidenta do grupo Coco do Iguape, contou-me que os “antigos”(8), em época de escassez na pesca, enchiam os caçuás(9) de frutas, dentre estas o coco, e se dirigiam a pé pelo litoral de Iguape até Mucuripe, em Fortaleza (cerca de 40 Km).

Com o fim de poupar a sola dos pés, devido ao tratamento dado pelo calor na areia da praia, eles saiam de madrugada. Mas isso não era suficiente para evitar o encontro com o sol em grande parte do caminho.

À noite, ao regressar da longa jornada, aquelas pessoas tocavam seus instrumentos (caixão - caçuá de madeira - e ganzás). Enquanto uns improvisavam versos sobre a lida no mar e suas aventuras amorosas, outros entravam na roda e imitavam (no mais das vezes zombando!) o saltitar de seus colegas na areia quente. Segundo Klévia, é justamente desse saltitar que surgiram os primeiros passos de coco.

No Crato, região do Cariri, uma senhora que canta coco e lidera um raro grupo formado só de mulheres, descreve que a dança é oriunda dos mutirões que se faziam na região, com o fim de construírem as casas uns dos outros. Ela diz que os passos vêm de uma imitação graciosa do ato de amassar o barro com os pés na feitura dos pisos daquelas casas.

Existem outras histórias sobre “as origens do coco”, todas elas se aproximam no enredo, mantendo as suas especificidades locais. Estão sempre relacionadas a uma atividade de trabalho coletivo, que diz respeito aos costumes de cada localidade.

Na festa é permitido quase tudo: beber, namorar, caçoar dos outros, dançar etc. Essas narrativas têm em comum uma noção de tempo específica, que alude a certo tempo “longínquo”.

Nas histórias contadas “o coco é desde muito tempo”. Fala-se de um tempo distante, característico das narrativas míticas da tradição.

O historiador Eric Hobsbawm explana sobre dois tipos de “tradição inventada”. Segundo ele, o termo “inclui tanto as ‘tradições’ realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado do tempo” (HOBSBAWN & RANGER, 1997: 9). Nesse sentido, o coco faz parte desse segundo tipo de tradição proposto por Hobsbawm.

Como afirma Lévi-Strauss “um mito diz respeito, sempre, a acontecimentos passados”. Tais acontecimentos “formam também uma estrutura permanente” que, por sua vez, relaciona-se “simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro” (1973:241).

Olhando por esse ângulo, quando os mestres repetem a afirmação de que “o coco é desde muito tempo”, estão reforçando a idéia de surgimento num período indeterminado no tempo, que legitima a tradição.

Algo que já existia antes deles nascerem e que, acreditam, vai continuar existindo depois de sua morte. O importante, para esta pesquisa, é compreender como as próprias pessoas reconstroem e ressignificam tais narrativas no atual contexto.

O Convite

O “convite” no coco, na leitura aqui proposta, tem dois momentos específicos: a) o momento em que o grupo de brincantes é solicitado para se apresentar em público e b) o “convite” que é realizado dentro da roda, durante a apresentação, seja em público ou em ensaios. Vamos ao primeiro caso.

O convite fora feito.
Logo cedo, os mais velhos punham-se a caminho da casa do anfitrião. Ao cair da tarde, os mais moços retornavam do mar. Encalhavam suas jangadas na praia e seguiam o rumo da festa, munidos de ganzás e caixão.

À luz do crepúsculo vespertino náutico seguiam os brincantes. Os anfitriões aguardavam a chegada dos coquistas. Naquela noite, certamente a maioria deles veria os primeiros raios da alvorada, ébrios pelo balançar do ganzá, pelo batuque do caixão e pelos efeitos da cachaça.

Mestre Raimundo Cabral conta os detalhes desse tempo relembrado com nostalgia:
Nós era uns hôme tudo cabôco novo, a gente saía daqui uma hora dessa [final de tarde], os véi saía de manhã pra lá, na hora que nós chegava lá, o coco começava, não tinha esse negócio de “- sente aí pra descansar as pernas um pouquin!”, não tinha esse jogo não. E nós começava a brincar das seis [18:00 h] às seis da manhã, sem parar. Nesse tempo eu tomava umas pinga e aí num esfriava não (AMORIM, 2005: 38-9).
Chegando ao local, depois da longa caminhada, bastava organizar “a negada” e começar a festa. Quem não fosse dançar ficava de fora da roda, batendo palmas, mexendo timidamente o corpo e, às vezes, repetindo os versos cantados pelo mestre.

Mestre Raimundo Cabral relata o clima que pairava nas comunidades onde ia cantar coco e ainda orienta sobre os perigos do mocororó:
Era pra nós mesmo, tudo pobre mesmo. Era pra vizinhança do lugar, eles fazia o convite. O cara da casa mesmo é que fazia o convite [ele dizia] “– bem negada, eu vou combinar os coquista, tal dia eles vêm pra cá, cantar um coco aqui”. (...) A gente chegava, aí pronto! “– chegou os coquista!”. Estourava gente de todo canto pra receber nós. Aí o cara começava a conversar com nós, aí dizia “– vambora negada começar!?”. Aí pronto. (...) Ali tinha o muncuzá, tinha o arroz doce, tinha – na época do caju – o mocororó (...) É [feito] do caju! A gente faz do sumo dele, aí bota no sol, aí ele custa, ele ferve chega sai uma espuma. O bicho [a bebida] fica forte, meu amigo, se você se alagar nele, ele lhe dá um porre que você não enxerga o caminho de casa não [risos]! Ele curte no sol, ele muda, é branco, ele de tanto curtir e de derramar aquela gororoba dele, ele vai fican’amarelo, quase da cor de cajuína. Aí, diga aí, ele fica bom com “carbonato”, aí ele fica bom. Mas num se alague muito nele não que é um porre, cabôco [risos!].[grifos meus] (Idem).
Nas falas de Mestre Raimundo é comum o uso do termo “convite” ou “proposta”. Chamo a atenção para a situação em que esse convite é feito. À primeira vista parece ser “apenas” um grupo de brincantes que vai animar uma festa. Acontece que as relações criadas em torno da realização da brincadeira extrapolam em muito uma visão utilitária de sua prática.

Um convite para ir brincar coco é algo que não se nega e Mestre Raimundo ensina que não se deve convidar uma turma de brincantes sem lhe oferecer algo em troca.

Nesse sentido, não se trata do pagamento de um cachê, embora os brincantes tenham aprendido a usar esse termo, mas (principalmente) de um reconhecimento dos laços que são gerados a partir do estabelecimento do “contrato” (MAUSS, 1974: 41-2; 56-7).

A idéia de contrato implica uma “obrigação” da reciprocidade. Tal obrigação encontra-se “escondida” sob o véu da dádiva. Seu caráter gratuito-obrigatório deságua numa troca de gentilezas, de banquetes, de danças, de festas etc.

Aparentemente desinteressadas, as trocas proporcionam “uma ordem racional” no universo de significados compartilhado pelos atores sociais. Como diz Cardoso de Oliveira, a função do contrato é social e não utilitária.

No caso do coco no Iguape, o contrato prevê uma união entre as pessoas envolvidas na trama, promovendo de certa forma uma diminuição de hostilidades (Idem, 1979: 27; 31-5).

O “convite” é feito aos brincantes que não recusam um chamado. Trata-se de uma economia para além das trocas de mercadorias por uma moeda que lhe fixe um preço de mercado.

Uma economia que ultrapassa valores monetários e engloba todo um sistema de trocas coletivas, em que “a circulação de riquezas constitui apenas um termo de um contrato muito mais geral e muito mais permanente” (Idem, 1974: 45).

Assim como faziam os chefes tribais estudados por Malinowski, quando do lançamento de suas canoas:
Feito o lançamento [da canoa], realiza-se então uma festa ou, mais precisamente, uma distribuição de alimentos [sagali], que obedece a vários tipos de formalidades e rituais. Essa distribuição de alimentos sempre se realiza quando a canoa não foi construída pelo próprio toliwaga [proprietário] e quando este, por conseguinte, precisa remunerar o construtor da canoa e seus ajudantes. Realiza-se também sempre que a canoa de um grande chefe é lançada, tanto para celebrar o acontecimento, quanto para exibir sua riqueza e generosidade e alimentar as muitas pessoas convocadas para ajudar no trabalho de construção (MALINOWSKI, 1978: 118).
Tais trocas simbólicas são necessárias à elaboração dos códigos de conduta social que orientam toda a organização do grupo. São saberes e hierarquias que vão e vêm nas complexas e elaboradas dinâmicas culturais.

Em relação aos brincantes de coco, percebo que os sentidos atribuídos à brincadeira misturam-se o tempo inteiro: o prazer, a diversão e a possibilidade de ganhar dinheiro estão sempre presentes.

Os contratos que envolvem a brincadeira do coco dizem muito sobre os processos de sociabilidade trançados na comunidade que a pratica.

Num mundo em que as relações sociais estão pautadas pela lógica de uma economia voltada unicamente para o lucro, a individualidade, a competição etc., procuro demonstrar outras formas de trocas e significados de economia existentes entre os brincantes de coco e seus “contratantes”.

Ao tratar desses assuntos com pessoas que desconhecem o seu universo de significados, os brincantes findam por não serem compreendidos.

A aceitação de um convite gera vínculos de solicitude. Na falta da devida compreensão dessas condições de sociabilidade, o contrato muda completamente de sentido: de um lado, um(a) “promotor(a) de eventos” tentando transformar uma manifestação cultural em “produto” para o consumo de turistas; de outro, pessoas habituadas a uma prática de economia que se apresenta “ingênua” aos olhos dos bem intencionados empreendedores...

Até aqui tratei do “convite” que acontece antes da roda se formar. Vamos então ao “convite” experimentado durante a apresentação do coco.

O “convite” dentro da roda, regado ao som dos instrumentos e das vozes, possui algumas especificidades. É possível observar toda uma órbita de gentilezas, no sentido exposto por Mauss, perpetrada entre os brincantes (MAUSS, 1974: 129).

No caso do Iguape, o “convite” é sempre feito atendendo ao sentido horário no círculo. Todos os que estão na roda dançam, independentemente da existência de pequenos mal entendidos.

Escolhe-se com quem dançar antes mesmo de começar a brincadeira, basta posicionar-se no círculo entre as duas pessoas com quem se gosta de dividir a dança.

Em Balbino, os brincantes também escolhem seu par antes de iniciar a brincadeira, e as duplas dançam juntas até que um dos pares canse(10).

O refrão é iniciado pelo mestre e repetido pelo coro. Em seguida, quando o mestre começa a “embolar” (cantar as estrofes), o primeiro brincante entra na roda, realiza sua performance e convida o próximo brincante para compartilhar a dança.

As letras cantadas no coco, como já disse anteriormente, estão divididas em refrão e estrofes. O refrão é sempre repetido pelo coro e as estrofes vão caindo da boca do mestre, ora saem versos já “gravados na memória”, ora versos são “tirados do juízo em cima da hora”, como diz mestre Chico Caçuêra.

Tanto em Balbino como em Iguape, os participantes iniciam a dança ao mesmo tempo em que o mestre inicia o “embolado”. Há uma sincronia entre os movimentos do corpo, o ritmo e a letra cantada.

Sendo que em Balbino os dançadores param para responder o refrão. Em Iguape não há essa necessidade, pois a resposta ao refrão é feita pelos demais integrantes que estão formando a roda.

No caso dos grupos que praticam o coco em círculo(11), não existe um tempo determinado para a dupla desempenhar suas habilidades na roda. O tempo é “medido” pela empolgação de cada um. A única “regra” é a de que quem está na roda há mais tempo, retira-se e quem fica convida o próximo.

Balbino e Iguape: diferentes lugares, sentimentos diversos

Jamais percebi desentendimentos pessoais ocorridos no decorrer da execução da brincadeira do coco. Em algumas poucas falas isoladas, ouvi comentários sobre a maneira de dançar de alguns brincantes: ora elogiando, ora fazendo chacota, ora comentando que “fulano” não sabia dançar direito etc.

Mestre Chico Caçuêra (Coco do Iguape) comenta os passos que estão sendo executados atualmente no coco. Ele diz: “por que tem muitos nôvo que tem vontade de aprender o coco, de dançar o coco: moça, mulher, senhora...” (sic) E continua:
Ele aqui, ele [Seu Viana], o João Véi – que chamam Gatinho – eles dançam, mas tem muitos ali que são novatos e ainda não pegaram o jeito do coco tombado. Por que você vê que o passo dele aqui [Seu Viana] – ele já um homem de... sessenta e um ano. Ele trisca só os pés no chão... É bem leve. (...) Porque coco não é você meter os pés, vai aqui, vai acolá não! (AMORIM, 2005: 43-4).
“Pisar bem”, para Mestre Chico, significa dançar o coco de acordo com o ritmo em andamento. Segundo ele, algumas pessoas – que ele chama de “novatos” – estão inventando passos novos que para ele não consistem em passos de coco.

A preocupação do mestre é manter a coreografia tal qual era executada no tempo em que ele a aprendeu, lá pelos anos 1970. Mestre Chico recorda, com uma cor de saudade nos olhos, das noites dedicadas ao coco no passado.

Para ele, os melhores dançadores são aquelas pessoas que mais se aproximam, do ponto de vista da coreografia, das pessoas que habitam suas lembranças.

Não se trata aqui da existência de passos “corretos” e “errados”. Mestre Chico observa as mudanças e continua cantando coco. As modificações na forma de dançar o coco, identificadas por ele, acontecem juntamente com outras transformações ocorridas em toda a sociedade.

É possível perceber as várias formas encontradas pelos brincantes para expressar seus sentimentos. De acordo com a idade a relação de cada pessoa com a dança é diferente. Uns mais tímidos outros mais ousados, e tem também os que conseguem “deslizar” seus passos de coco com a leveza de uma garça.

Quanto à visibilidade do grupo de coco no Iguape, encontrei moradores que alegaram desconhecimento da existência de coco naquela comunidade. Outros moradores me disseram ser a brincadeira algo pertencente ao passado, que já não era mais praticada havia algum tempo.

Na contra-mão dessas informações, ouvi pessoas noutros locais de Aquiraz, assim como em Fortaleza e demais municípios do litoral cearense, que não só sabiam da existência do grupo Coco do Iguape, como também teciam ricos comentários a respeito da atuação deles.

Na comunidade de Balbino a realidade é outra, praticamente todos os moradores brincam ou já brincaram coco em algum momento de suas vidas.

A principal diferença entre os dois grupos de brincantes aqui estudados consiste na relação que mantêm com o “povo da cidade”, ou seja, o público espectador.

Ambos contam em média com 16 integrantes nas apresentações externas. O número é devido à facilidade de locomoção. Geralmente são mandados carros tipo furgão, como vãs ou peruas, o que impede a participação de um número maior de pessoas.

E ainda tem a questão da divisão do cachê (quando há), quanto mais pessoas menos dinheiro sobra para cada integrante.

O grupo Coco do Iguape desempenha um papel mais adaptado à estrutura do “espetáculo”, com uma organização dos tocadores, cantadores e dançadores voltada para o espectador.

Esses brincantes usam um figurino: calça, camisas, sapatos e chapéus uniformizados, que aludem a indumentária usada pelos pescadores, com as inscrições “Raízes Artísticas do Iguape”.

No final das apresentações os brincantes saem a cata de pessoas para participar da roda: eles ensinam uns passos básicos e se divertem com os espectadores pelejando em aprender a dança.

Nesse momento, a lógica do sentido horário é deixada de lado e todos dançam ao mesmo tempo, em pares geralmente formados por um brincante e um membro da platéia.

O grupo tem um CD, gravado com recursos do I Edital das Artes da SECULT-CE (2004), que é comercializado ao final das apresentações.

Os brincantes de Balbino, liderados pelo Mestre Nel Chagas, também usam um figurino em alusão à lida pesqueira, mas demonstram pouca intimidade com os microfones: quase não falam com os espectadores e quando estão fora de Balbino raramente procuram envolver o público na brincadeira.

É como se brincassem para eles mesmos. O grupo não usa sapatos por acreditar que “pescador é tudo descalço mermo”, como diz um brincante, embora isso implique em ferimentos nos pés, provocados por solos bem diferentes da praia em que estão acostumados a dançar.

Há dois anos um grupo de pessoas começou a ensinar a dança do coco às crianças da única escola de Balbino. Mas, como diz Mário de Andrade (2002), a brincadeira não se reduz à dança, é preciso aprender as melodias e os versos que compõem a parte musical e poética do coco, tarefa mais difícil de ensinar, pois pressupõe habilidades outras como por exemplo a capacidade de memorizar e/ou construir versos e melodias no calor das horas.

Atualmente, as “aulas” de coco estão paradas. O grupo de adultos reúne-se apenas em ocasiões especiais (regatas, festa de São Pedro), por conta da saúde precária de Mestre Nel.

Os mais novos, segundo os mais velhos me contaram, só querem brincar quando há a possibilidade de ganhar dinheiro. Ainda não sei se "ganhar dinheiro" é o motivo principal do interesse pela brincadeira por parte dos jovens de Balbino.

Vários são os pontos em comum entre os brincantes das duas localidades, dentre os quais: o fato de serem todos moradores de um litoral muito cobiçado pela especulação imobiliária; de possuírem ascendentes comuns (populações indígenas e afro-descendentes remanejadas durante a colonização e posteriormente durante as grandes secas no Estado para aqueles sítios); do pouco ou nenhum contato com a escrita e a relação de trabalho com a pesca artesanal.

O Mestre

O status de mestre aproxima-se da noção atribuída aos mestres artesãos medievais. Assim como aqueles, os mestres de coco também recebem o conhecimento na condição de aprendizes, até que chegue o momento em que são “promovidos” à condição de Mestre.

Mestre Raimundo Cabral conta que antes de embolar coco...
... eu só era dançador. Mas aí ele [Mestre Paulino] viu que eu encostei, fiquei encostado dele e nos ensaio quando ele embolava eu acompanhava o embolamento dele. Aí ele disse: “- rapaz, com certeza esse cara vai dar um bom embolador!”. (...) Daí eu comecei a prestar a atenção e quando ele disse assim: “- agora nêgo você diga uns dois cocos que eu cantei pra você, pra ver se você dá prum bom mesmo”. Aí ele disse: “- pega o ganzá!”. Eu peguei o ganzá, comecei balançar, os outros batendo no instrumento – que era o caixão – outros batendo palmas... Aí eu comecei a embolar, embolei assim uns quatro coco, aí ele se agarrou comigo e gritou: “- eu num tô dizendo que o nêgo era bom!” (...) era aquele carinho medonho. “- você vai ficar no meu canto!”. E foi o que aconteceu, fiquei no canto dele (Idem: 46).
Quando Mestre Raimundo diz que “era só dançador” está se distingüindo hierarquicamente dos demais brincantes. Mas é preciso relativizar o sentido dessa distinção, uma vez que o próprio mestre alega que um mestre sozinho, sem o “respondidor”, não é um mestre.

O “peso” da hierarquia é contra-balanceado pela necessidade dos demais. Não basta saber embolar “a companha que tá com a gente precisa animar, aquele negócio todo, tem que pegar com entusiasmo, né?” (Idem: 47-8).

Ele está falando do respaldo necessário a um cantador de coco. E esse respaldo é gerado na relação com os demais brincantes. Mesmo assim, quem escolhe ou faz um mestre é outro mestre, geralmente mais velho.

Nas minhas andanças pelo litoral, observei uma relação entre os mestres de coco e os mestres de embarcação. Não há uma relação direta, mas será mera coincidência um mestre de embarcação ser também um mestre de coco?

E quando um mestre é escolhido por meio de um edital público de incentivo à cultura, como fica a questão do reconhecimento?

O relato de Mestre Raimundo é a narração do seu ritual de iniciação, a passagem de dançador a mestre. Segundo ele, o interesse em aprender a “embolar coco” chamou a atenção de Mestre Paulino que viu no então garoto o embrião de um líder.

O aprendiz acompanhava seu mestre, substituindo-o esporadicamente, preparando-se para o grande dia em que o substituiria definitivamente.
Quando Mestre Paulino e seu companheiro de embolada – Mestre Raimundo Canesteira – faleceram, Mestre Raimundo Cabral assumiu a liderança do grupo. Mas,
...se fosse pra eu cantar só, puxa muito. Tem que ser os dois, porque a gente pega os embolados aí sacode os embolados um pro outro. (...) Aí eu pensei: “quem é... que eu vou caçar uma pessoa pra ficar mais eu”? (...) e vi esse véi, o Franciner, aí convidei ele – o meu tio. Ele sempre tirava coco por aí, só, mas não tinha graça. Ele não tinha dançador que prestasse, não tinha o caba que respondesse o coco. Aí, depois da morte do véi Franciner, eu convidei o Chico Caçuêra... “-vou seu Raimundo!” [disse Chico]. (...) “- Francisco, eu mandei lhe chamar aqui porque eu tô cantando coco só e eu sei que você canta coco bem, eu sei que você já falou pra mim que se eu mandasse lhe convidar, você vinha brincar mais eu”. (...) “- tá bem, eu tô com você!” Aí pronto, fiquemo [grifos meus] (Idem: 48).
Mestre Raimundo acredita que cantar coco sozinho “puxa muito”, ou seja, é uma tarefa que lhe exige muito esforço físico, por isso ele sempre convidou outros mestres para o acompanhar nessa missão, que ele projeta levar até os últimos dias de sua vida.

Atualmente o grupo Coco do Iguape conta com os mestres Raimundo Cabral e Chico Caçuêra. Dentre os grupos de coco que encontrei no Ceará, apenas o do Iguape é composto por dois mestres. Isso gera alguns conflitos, sempre mediados pela presidenta do grupo.

Mestre Chico Caçuêra canta “sou a madeira que o cupim teve preguiça de furar”. O verso diz muito sobre o que ele pensa da sua condição de homem forte, desbravador do mar, resistente aos castigos do sol e do sal.

Um lutador que brinca com as ações do destino, driblando as intempéries que o curso da vida lhe oferece. A iniciação de Mestre Chico se deu ouvindo o seu pai que era cantador de coco.
Embolar coco eu aprendi com... Seu Nel [coco do Balbino], que eu já sabia de uns coco... Eu embolei muito coco mais ele, aí fiquei né? Aí parei por uns tempo. No tempo d’eu solteiro eu parei, só dançava, mas de embolar eu parei... Mas aí adispois de casado eu comecei a embolar, né? Eu já sabia de uns coco que papai tinha me ensinado, que eu ouvia ele embolando... E o coco tem isso, o coco se você tiver boa memória, você grava eles tudin na cabeça, mas tem muito coco que você faz em cima da hora, né? (Idem: 49).
Segundo Mestre Chico, embolar coco é para quem tem “bom talento”, quem não o tem participa da festa como dançador. A condição de dançador exige certo zelo nos passos, é preciso ter a ginga e a leveza.

Como ele diz, basta apenas “triscar” os pés no chão, não carece alvoroço, nem saltos espalhafatosos. Ele lamenta o fato de seus filhos não terem interesse em seguir “a arte” do pai.

Situação essa que não aflige Mestre Raimundo, uma vez que todos os brincantes do grupo Coco do Iguape são seus familiares, com as únicas exceções de Mestre Chico e de Klévia.

Mestre Raimundo anda tranqüilo em relação à continuidade da brincadeira do coco no Iguape, pois seu filho Renato dá indícios de se tornar um “bom mestre”.

O ritual de iniciação já começou, o aprendiz de mestre anda substituindo o pai nos ensaios e também compõe novos versos. Os saberes estão sendo transmitidos, reproduzidos e reapropriados.

Renato narra os princípios de sua iniciação, informando que está “lá aprendendo. Eu vejo eles cantando, né? Aí eu fico lá, só escutando. Aí eu aprendo umas emboladas lá com eles, às vezes eu mesmo faço umas da minha cabeça mesmo... aí eu venho cantando, aí de repentemente sai um verso, aí eu já passo”.

Outras pessoas do grupo já tentaram cantar coco, mas o canto pressupõe habilidades que não sei explicar de onde vêm. Existe algo mais que interesse e capacidade de memorizar, que os mestres chamam de “dom”.

A grandiosidade do papel social exercido pelo mestre está na sua relação com os brincantes que legitimam a sua posição diferenciada, “respondendo” à altura do que lhes é solicitado.

De fato, após presenciar várias apresentações de coquistas, percebo o quão importante são todas as pessoas envolvidas na brincadeira.

O mestre se mantém atento a tudo o que acontece: olhos e ouvidos aguçados prestam atenção ao que ocorre nas cercanias, seja um turista que venha filmá-los ou uma pessoa “de fora” que queira entrar na brincadeira. O mestre conduz a harmonia do grupo, mas nunca sozinho.

Quando o Estado incentiva a cultura

A Secretaria de Cultura de Aquiraz procurou Mestre Raimundo e fez uma proposta para ele ensinar o coco. A resposta negativa do mestre assustou o ilustre secretário de cultura, que não entendeu os motivos pelos quais o mestre recusou-se a passar o seu conhecimento, mesmo sendo remunerado. Mestre Raimundo conta o caso:
Aí, quando foi agora, ele foi fazer uma proposta comigo e mandou me chamar, eu e o outro mestre, lá no barracão da praia. (...) pra eu ensinar o grupo da Tapera das Artes, sabe? Aí eu digo: “- Cacau eu sinto muito, eu não posso ensinar a esse grupo não”. “- mas por que Seu Raimundo? O senhor vai ganhar dinheiro, o senhor vai ficar como que seja empregado, um salário?!”. Eu digo “- é, mas mesmo assim eu não vou ensinar não!”. “- porque eu não vou dar meu saber a gente lá de fora não, meu saber que eu tenho, eu vou dar pro meu filho, quando eu chegar a morrer, fica os meus filhos no meu canto”. Aí ele disse “- o senhor tá com medo?”. E eu “- não tô com medo não. O que acontece é eu ir ensinar, eu passar tudo que eu tenho gravado na minha cabeça pros outros, amanhã ou depois você ‘passa a mão’, aí você mesmo forma um grupo e nós fica lá pra trás. Não, eu não vou aceitar não!”. Acho que por causa disso ele magoou-se e depois disse assim “- não, mas isso aí a gente pode aprender fácil!”. “- pois então faça pela sua memória e aprenda!”. O que eu disse pra ele foi isso e aí ele ficou afastado de nós. Ele não tá bem do nosso lado não (Idem: 51-2).
A maneira como o secretário lida com os valores simbólicos dos brincantes é uma demonstração da atuação daquele município na realização das chamadas Políticas Culturais.

O fato aponta distintas concepções e experimentações de economia. Há um “preço” para o conhecimento guardado na memória dos mestres? Como avaliar isso? Não sei.

Até aqui tentei identificar como esses saberes são passados às gerações futuras, num ritual de iniciação que acontece no percurso das trajetórias de cada um. Esse ritual atende a demandas de outra ordem e está fundado no princípio da sucessão de saberes que é vivenciado entre o mestre e seu aprendiz e legitimado na coletividade dos brincantes.

Os gestores municipais e os produtores de "eventos culturais" levam isso em consideração?

A preocupação de Mestre Raimundo está relacionada com a possibilidade de não mais se apresentar. Muitos contatos são feitos via secretaria de cultura.

Uma vez formado um grupo de coco ligado à secretaria, o mestre acredita que não será mais chamado. A relativa independência do grupo Coco do Iguape com a secretaria de cultura, gera muitos conflitos, considerados como problemas que o secretário pretende resolver formando outro grupo comandado por ele.

Atualmente o grupo encontra-se dividido: uma parte se apresenta nos eventos da prefeitura, a outra se nega a participar.

Os brincantes desejam, sim, arrecadar dinheiro, têm vontade de se apresentar em vários locais, de viajar pelo mundo afora etc.

Mas eles fariam qualquer coisa para realizar suas aspirações? Um dos valores principais que os mestres têm é o seu conhecimento “gravado na memória”. E isso não se limita à obtenção de lucro, pois envolve “o elemento da honra, do prestígio, de mana que confere riqueza”.

Uma “regra de generosidade” na maioria das vezes incompreendida (MAUSS, 1974: 50). Radcliffe-Brown acrescenta: “o fim [do contrato] é antes de tudo moral, o objeto é produzir um sentimento amistoso entre as duas pessoas em jogo” (apud Idem: 70-1).

O contrato e a troca são misturas: “misturam-se as almas nas coisas; misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e é assim que as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e se misturam” (Idem).

O dinheiro funciona como um elo na circulação de bens, sejam estes materiais ou simbólicos. No entremeio desse mundo, governado pelo modelo de mercado que pressupõe contratos individuais, existe uma noção de contrato coletivo, em que a circulação de bens, de ritos, de danças etc., constitui, em última instância, uma circulação só.

Segundo Mauss, “se [as pessoas] se dão e se retribuem as coisas, é porque se dão e se retribuem ‘respeitos’ – dizemos ainda ‘gentilezas’. Mas é também porque o doador se dá ao dar, e, ele se dá, é porque ele se ‘deve’ – ele e seu bem – aos outros” [grifos originais](Idem: 129).

A “riqueza” dos mestres de coco, assim como de outros mestres da tradição oral, poderá ser avaliada por parâmetros mercadológicos? Se existe a necessidade de “incentivos” para a continuação e maior propagação de brincadeiras tradicionais, é preciso que as decisões sejam orientadas pelas demandas dos brincantes, respeitando suas práticas e seus costumes.

O que não tem acontecido na execução dos projetos selecionados pelas chamadas “Leis de Incentivo à cultura”. A estrutura dos editais exige um domínio da língua portuguesa que exclui aqueles que deveriam ser por definição os principais beneficiados pela lei.

Para driblar os mecanismos burocráticos, os brincantes recorrem aos chamados “Produtores Culturais”. Estes, salvo raríssimas exceções, estão muito mais atentos aos possíveis ganhos monetários do que ao respeito às práticas culturais de seus “clientes”.

A Mata

Na mata se realiza grande parte dos rituais presentes na brincadeira do coco em Iguape e em Balbino. O preparo da roupa, a madeira usada na feitura das jangadas e os demais utensílios de pesca vêm de suas entranhas.

O tecido para a roupa é de algodão, na cor branca que será posteriormente tingido num processo todo especial, realizado pelos próprios brincantes no meio da mata que circunda a região.

Logo cedo, antes mesmo que o sol dispare suas primeiras flechas de luz, o pescador e seus ajudantes põem-se a caminho da mata. A caminhada é longa e cansativa, por isso é preciso “pôr o pé na estrada com o sol ainda frio”.

O objetivo é encontrar cajueiros, donde se extrairão suas cascas que servirão ao tingimento das roupas. Quem melhor descreve o evento é Mestre Raimundo Cabral, que ainda comenta sobre uma “gravação” [documento em vídeo] prestes a acontecer. Ele diz:
Nós vamos fazer essa gravação, tá tudo lá, tudo assinado pra gente filmar lá dentro dos matos. A gente vai tirar a casca do pau, lá a gente vai bater, lá a gente vai fazer o fogo, vai botar no panelão a casca pra ferver, a gente... Levar o repórter, já tá tudo falado, tá tudo certo... O cara filmando, gravando a gente falando, explicando: “- isso aqui é a casca do pau do cajueiro, é essa aqui [a panela] que vai ser tingida a roupa”. Aí o... Todo tempo gravando... É, isso mesmo. Lá a gente faz um varal, a gente bota umas forquias, faz um varal pra botar as roupas pra enxugar lá na mata mesmo, tudo filmado. Vê quando a pessoa coloca dentro e mexe, vira pra cima... É um espetáculo, vai ficar bonito, tudo filmado lá na mata (AMORIM, 2005: 54-5).
A filmagem descrita por Mestre Raimundo estava prevista no projeto selecionado e aprovado pelo I Edital de Incentivo às Artes, da SECULT (Secretaria de Cultura do Estado do Ceará), de 2004. Mas até agora a proposta não saiu do papel.

O projeto foi contemplado com R$ 21.000,00 (vinte e um mil reais). Em parceria com a Secretaria de Comunicação, Turismo e Cultura de Aquiraz, o responsável pela elaboração do projeto gravou o CD Coco do Iguape e organizou as apresentações públicas do grupo nas quatro macro regiões do Estado, conforme exigência do Edital.

Os brincantes alegam não ter recebido dinheiro algum do recurso disponibilizado. Havia a promessa de compra de um figurino novo que seria confeccionado diante das câmeras. A “filmagem” nunca aconteceu e o novo figurino também nunca chegou ao Iguape.

Sobre a madeira para fazer a jangada, Mestre Raimundo diz energicamente que a madeira “de fazer jangada é a timbaúba”, e adiciona: “pois é, nóis já andemo, já fumo lá, fumo pegar a timbaúba, os menino andaram fazendo umas jangadas aí... é, é lá pra banda da Pataca, acolá”.

O ato de ir à mata é envolvido num ar de mistério, os brincantes não o fazem com freqüência. E essa atitude contribui para a produção de uma aura mística em seu entorno.

Diz o costume que a cor arroxeada, oriunda do sumo da casca do cajueiro, só é adquirida lá na mata. Algumas experiências foram feitas, no sentido de trazer a casca lá da mata para tingir a roupa em casa, mas a cor pretendida não foi alcançada.

A roupa, além de resistente ao esforço que a pescaria pede, na cor que é tradicionalmente colorida, protege os pescadores dos raios solares. Por isso, a cor precisa ser exatamente a que é conseguida na mata.

Os brincantes de coco ressignificam o uso da roupa. No ato da apresentação a roupa não é usada para ir ao encontro do mar, mas para informar aos espectadores que a brincadeira do coco está vinculada à pesca artesanal.

O uso da roupa demonstra a noção de “pertença” a um grupo específico de trabalhadores – o de pescadores e seus familiares.

Nesse processo de reutilização da roupa, os brincantes não economizam esforços para repetir o ritual de ir à mata, extrair a casca do cajueiro, tingir a roupa etc. A roupa de pescador transforma-se em figurino.

Mesmo sabendo que não vão precisar daquela cor exata, necessária à lida no mar, eles reproduzem o mesmo ritual, atribuindo-lhe um outro significado (SAHLINS, 1998; 2003).

Quando o assunto é colher na mata a timbaúba para a confecção das jangadas o mistério aumenta. O ritual é muito próximo do descrito por Malinowski: uma reza é realizada com o fim de benzer a árvore, antes mesmo de cortá-la (MALINOWSKI, 1978).

A timbaúba tem a característica de boiar, mesmo que o mar bravio vire a jangada, ela continuará boiando, o que pode evitar uma possível tragédia.

Mesmo assim, de vez em quando o mar “engole um”, como dizem os pescadores, de vez em quando um pescador não retorna à terra firme e não se tem mais notícias dele. Fica no mar, nos braços de Iemanjá.

Dois importantes personagens literários me vêm à mente, quando penso na lida desses homens do mar: o velho Santiago, personagem de Hemingway, em “O velho e o mar” (1980), enfrentando bravamente por dias a fio um peixe que aos poucos vai sendo vencido no cansaço; e Gilliatt, estranha criatura inventada por Victor Hugo, em “Os trabalhadores do mar” (2002), que desbrava a mais furiosa das tempestades em nome de um amor não correspondido.

Em ambas narrativas identifico os habitantes reais do Distrito de Jacaúna (Iguape) e de Balbino, reelaborando suas vidas diante das vicissitudes postas pelo mundo industrializado, da individualidade exacerbada, da especulação imobiliária, do turismo sexual e do consumo desenfreado etc.

Vão à mata reproduzir costumes deixados pelos seus ancestrais e à Capital se apresentar como brincantes de coco, usando roupas de pescador, com os pés descalços e a pele marcada pelo sol.

Depois retornam aos seus pequenos lares, no entorno da praia, onde são pessoas simples, vivem de biscates e da pesca artesanal – “quando dá”, nas palavras de Mestre Chico Caçuêra.

Notas:

(1)Antropólogo, músico e educador. Nasceu em Recife (PE) e cresceu entre Santa Rita e João Pessoa (PB), onde aprendeu a brincar coco desde criança. Autor de “Em cima da hora: a brincadeira do coco no Iguape (CE)”. Tem apresentado trabalhos em congressos especializados e ministrado oficinas sobre a brincadeira do coco nos lugares por onde passa. É idealizador do grupo musical Cocos do Norte, uma tentativa de levar ao palco as inquietações e descobertas oriundas de sua pesquisa sobre os cocos no Ceará.

(2)Jacaúna foi um guerreiro tupinambá ou potyguar (não se tem certeza) que se uniu ao colonizador Soares Moreno [séc. XVII], na tentativa deste de implantar o domínio luso nas terras do Ceará (GIRÃO, 1986: 22-8). Distrito de Jacaúna é o nome oficial da localidade conhecida como Iguape.

(3)A expressão genérica “africanos” designa, neste trabalho, todas as pessoas – e seus descendentes – chegadas ao Brasil oriundas das mais diversas regiões do continente africano, no período colonial.

(4)Na verdade não se tratava de uma “festa” como a entendemos hoje. Aquelas pessoas quando não se encontravam acorrentadas, estavam de qualquer modo numa situação de cativeiro. Muito embora os cronistas da época chamem de “festa” as práticas culturais daquelas populações.

(5)Optei por essa forma de organização por ser a mais recorrente nos grupos de coco do Ceará. No entanto, essa forma pode variar. Em Balbino, o grupo se organiza em duas filas de brincantes, uma de frente para a outra, com os tocadores posicionados em uma das extremidades do corredor, todos dançam ao mesmo tempo, cada qual com o seu par.

(6)No caso dos grupos observados até então, a umbigada é apenas simulada e o “convidador” realiza uma mise-en-scène na frente de quem se quer convidar.

(7)Chamado de “embolador”, mas só no Ceará. Pois “embolador” nos outros Estados é aquele que embola o coco em desafio com outro embolador, usando pandeiros ou ganzás. O termo mais usado fora do Ceará para designar o cantador de cocos dançados é “tirador” ou “atirador” de coco (AYALA & AYALA, 2000).

(8)Ela se refere aos mais velhos coquistas da região que, em sua maioria, já não se encontram mais entre nós.

(9)Trata-se de um caixão de madeira que vai pendurado no lombo dos animais (jumentos, cavalos, bois), usado até hoje pelos brincantes do Iguape como instrumento de percussão, muito parecido com o cajón.

(10)Cf. nota número 5.

(11)Coco do Iguape, de Majorlândia, de Caetanos de Beberibe, de Caetanos de Cima, de Trairi, de Almofala entre outros.


Revisão do texto: Rodrigo Oliveira

Referências Bibliográficas:

AMORIM, Ninno. Em cima da hora: uma etnografia da brincadeira do coco no Iguape (CE). Fortaleza: Monografia – Depto. Ciências Sociais/UFC, 2005.
ANDRADE, Mário de. Os Cocos. 2. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.
AYALA, Maria Ignez N. & AYALA, Marcos. Cocos: alegria e devoção. Natal: EDUFRN, 2000.
HEMINGWAY, Ernest. O velho e o mar. São Paulo: Círculo do Livro, 1980.
HUGO, Victor. Os trabalhadores do mar. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
MALINOWSKI, Bronislaw. Os argonautas do Pacífico Ocidental. 2. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Coleção Os Pensadores).
MAUSS, Marcel. Antropologia. São Paulo: Ática, 1979. [Grandes Cientistas Sociais – 11, CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto (Org.)].
_________. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974. Vol. II.
SAHLINS, Marshal. Cosmologias do Capitalismo: o setor trans-pacífico do “sistema mundial”. In. ABA: XVI Reunião Brasileira de Antropologia, 1998.
_________. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

Comentários

Anônimo disse…
Também conheci o coco à alguns anos atrás quando eu era só uma criança, agora pretendo produzir um documentário sobre tal tradição, em específico, o povoado de balbino, com sua imensidão cultural, focando o coco.
Se poder me ajedar com alguma informação relevante além do que já foi lido por mim no seu blog...
jack_kpg@hotmail.com
86548856 Jackson Diniz

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