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Os cocos: uma manifestação cultural em três momentos do século XX (parte 1)

Maria Ignez Novais Ayala

RESUMO

NESTE ARTIGO é analisada uma manifestação popular desenvolvida em diferentes locais do estado da Paraíba, principalmente por negros e seus descendentes. Nela se entrelaçam literatura oral, música, canto e dança. Os cocos foram registrados com rigor científico nas décadas de 20 e 30 devido à iniciativa de Mário de Andrade, de que resultou uma ampla documentação. A preocupação em organizar um rico acervo sobre os cocos, fundamentado em observação direta e registros por meios mecânicos e eletrônicos em campo, com procedimentos técnicos e metodológicos que permitam análises criteriosas dessa manifestação de cultura popular nordestina, buscando ressaltar suas especificidades, motivou a pesquisa que vem sendo desenvolvida desde 1992 na Paraíba. Neste artigo reconhece-se a importância dos acervos constituídos por Mário de Andrade e pelos integrantes da Missão de Pesquisas Folclóricas da Discoteca Municipal de São Paulo, sintetiza-se questões relacionadas à manifestação de poesia, canto e dança no presente, considerando-se o contexto em que vivem os dançadores e cantadores, o significado que a brincadeira do coco tem para eles, a ponto de se configurar até como afirmação de identidade. Analisa-se, ainda, a situação da cultura popular numa sociedade em que a escrita é hegemônica, explicitando a perspectiva militante adotada nesta pesquisa.

ABSTRACT

THIS ARTICLE FOCUSES on a popular manifestation which grew in several parts of Paraíba State, mainly among blacks and their descendants. Oral literature, songs and dances are interwoven in that manifestation known as "coco". "Cocos" were first recorded, using scientific methods, in the 20's and 30's thanks to Mário de Andrade's initiative, which produced a large documentation. The wish to organize a precious heap of information on "cocos", based on direct observation and field recording with mechanical and electronic instruments, using techniques and methods which may allow judicious analyses of that Northeastern cultural manifestation, in an attempt to point out its characteristics, has been the motivation of our research going on in Paraíba since 1992. In this article the importance of the documentation amassed by Mário de Andrade and the members of the Missão de Pesquisas Folclóricas of São Paulo's Municipal Phonograph Record Collection is acknowledged; questions related to current poetry, song and dance manifestations are summed up, taking into account the dancers' and singers' life contextualization, the special meaning which the "coco" play has for them nearly becoming an identity affirmation. Furthermore, the popular cultural condition is analyzed within its social setting in which writing is hegemonic, making thus explicit the militant point of view adopted in this research.

A brincadeira do coco:
dança e poesia afro-brasileira na Paraíba

SÃO MUITOS OS DANÇADORES e cantadores de coco na Paraíba, podendo ser encontrados em diferentes localidades da capital, do litoral e do interior do estado (1). Dançados e cantados, os cocos não contam com estudos recentes rigorosos e sistemáticos que permitam analisar sua diversidade. Por causa das diferenças ocultadas sob essa designação, parece mais apropriado atribuir-lhes um tratamento plural, equivalendo a dizer que sob o mesmo nome podem se revelar mais do que múltiplas formas de uma única manifestação cultural; podem se apresentar diferentes práticas poéticas de mais de um sistema literário.

Mário de Andrade em "A literatura dos cocos", estudo publicado em Os cocos, refere-se à dificuldade de precisão mediante nomenclatura:

"Antes de mais nada convém notar que como todas as nossas formas populares de conjunto das artes do tempo, isto é cantos orquéstricos em que a música, a poesia e a dança vivem intimamente ligadas, o coco anda por aí dando nome pra muita coisa distinta. Pelo emprego popular da palavra é meio difícil a gente saber o que é coco bem. O mesmo se dá com 'moda', 'samba', 'maxixe', 'tango', 'catira' ou 'cateretê', 'martelo', 'embolada' e outras. (...)

Coco também é uma palavra vaga assim, e mais ou menos chega a se confundir com toada e moda, isto é, designa um canto de caráter extra-urbano. Pelo menos me afirmou um dos meus colaboradores que muita toada é chamada de coco" (2).

A poética que se desenvolve atualmente na dança ou na brincadeira do coco (conforme a denominação dos participantes), no que se refere ao canto, a esquemas métricos, rímicos e a aspectos temáticos, tem se revelado distinta daquela encontrada nos cocos cantados por emboladores ou coquistas, isto é, duplas de repentistas que se apresentam diante de um público de ouvintes. Neste último caso, em que os cocos aparecem dissociados da dança, sendo cantados em desafio, os emboladores improvisam seus versos, cada qual utilizando um instrumento de percussão (pandeiro e, hoje mais raramente, ganzá) para marcar o ritmo, que faz fluir a poesia. O confronto se dá de modo a cada coquista procurar ridicularizar mais seu companheiro por meio de comparações grotescas, provocando o riso da platéia. A maneira como os cantadores de coco se dirigem ao público nem sempre é respeitosa ou formal. Basta não receberem o dinheiro no chapéu ou obterem uma quantia pequena daqueles que compõem sua platéia, para a ridicularização também se voltar contra o público.

Já nos cocos que motivam e acompanham indissociavelmente a dança, a poesia não obedece aos mesmos cânones de composição. Não estão alicerçados na disputa que granjeia a preferência do público ora para um, ora para outro poeta repentista. A ironia e o grotesco tal qual se desenvolvem nos cocos de embolada apenas cantados ao acompanhamento de pandeiro não são caracterizadores dos cocos cantados durante a dança. Na brincadeira do coco há ironia, há ambigüidade, há momentos de crítica social, mas a construção dos versos e o sentido da poesia é diferente. A poesia, neste caso, configura-se como um dentre vários elementos indispensáveis para o canto e a dança. Nos cocos dançados predomina o coletivo: para que haja a dança é preciso gente para (a)tirar os cocos e para responder dentro da roda de dançadores, gente que toque os instrumentos, gente que saiba os passos que caracterizam a dança e esteja disposta a entrar na roda.

O interesse atual pelo estudo dos cocos na Paraíba surgiu devido às dificuldades para sua caracterização. As diferenças de contexto, a natureza dos cocos (dança coletiva, canção ou canto em desafio), as várias formas poéticas e a diversidade de nomes (coco praieiro, coco de roda, coco de embolada etc.), às vezes levam a supor que se trata de mais de uma manifestação cultural sob a mesma denominação.

Vários estudiosos assinalam a origem negra dos cocos – africana, para uns, alagoana, para outros –, mas não chegam a examinar cuidadosamente os aspectos que dão aos cocos uma identidade cultural afro-brasileira. São fortes as marcas da cultura negra nos cocos, especialmente nos dançados: os instrumentos utilizados, todos de percussão (ganzá, zabumba ou bumbo, zambê, caixa ou tarol), o ritmo, a dança com umbigada ou simulação de umbigada e o canto com estrofes seguidas de refrão cantado pelo solista e pelos dançadores. Esses elementos aparecem também no batuque, no samba-lenço paulista, no jongo, no samba de partido alto, no samba de roda da Bahia.

Ao iniciarmos a pesquisa de campo, tínhamos como objetivos principais reunir depoimentos de coquistas e dançadores, registros da dança e do canto em desafio em seus contextos de produção para, a partir da experiência e das maneiras de avaliar daqueles que estão intimamente relacionados com os cocos, obter informações fundamentais para um conhecimento mais abrangente da situação atual dessa manifestação de cultura afro-brasileira no Nordeste. Tais objetivos continuam válidos, pois as informações mais recentes encontradas em livros pouco ou nada nos auxiliam em nossa busca. Já os cantadores e dançadores, ao explicarem em que consiste a dança ou o canto, têm possibilitado reunir esclarecimentos raramente encontrados nas publicações sobre os cocos.

Os dados parciais da pesquisa trazem elementos para uma reflexão sobre as condições da dança atualmente, permitindo-nos verificar:

* se há desagregação dos grupos de dançadores, a ponto de reduzir o coco a fragmento de cultura;

* se o coco é caracterizado como "dança de negro", qualificação que, dependendo do contexto no qual surge, pode ter significados antagônicos: ora como rejeição, ora como afirmação de uma identidade cultural. Associada ao último aspecto, tem se imposto a análise dos diferentes tipos de preconceito (étnico, cultural, social etc.) e a verificação das situações e condições que colocam os cocos em relação com outros tipos de dança e de poesia populares e de outras minorias na Paraíba.


Notas

1 Os cocos vêm sendo estudados na UFPB desde abril de 1992, inicialmente pela equipe de pesquisadores do projeto integrado Representação do Oprimido na Literatura Brasileira, por meio do subprojeto A situação atual dos cocos na Paraíba. A pesquisa recebeu financiamento do Centro de Estudos Afro-Asiáticos/Fundação Ford durante um ano, entre 1992 e 1993, e do CNPq de 1992 a 1996, ininterruptamente. Atualmente os estudos continuam a ser desenvolvidos no LEO (Laboratório de Estudos da Oralidade) por pesquisadores do projeto integrado Literatura e memória cultural: fontes para o estudo da oralidade, com apoio do CNPq a partir de março de 1996.

2 ANDRADE, Mário de. Os cocos. Prep., introd. e notas de Oneyda Alvarenga. São Paulo, Duas Cidades; Brasília. INL/Fundação Pró-Memória, 1984, p. 347 (grifos meus). [ Links ]

3 ALVARENGA, Oneyda. Explicações. In: Mário de Andrade, op.cit., p. 10.

4 ANDRADE, Mário de, op. cit., p. 387-388.

5 ALVARENGA, Oneyda. Explicações, id., ib., p. 17-18 (grifos de AO).

6 Conforme resumo das aulas do Curso de Etnografia instituído pelo Departamento Municipal de Cultura e dirigido pela Sra. Lévi-Strauss, acervo da Discoteca Oneyda Alvarenga.

7 CARLINI, Álvaro. Cante lá que gravam cá: Mário de Andrade e a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938. São Paulo, 1994. Dissertação (mestrado), Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 333. [ Links ]

8 PIMENTEL, Altimar de Alencar. O coco praieiro; uma dança de umbigada. 1ª. ed.: João Pessoa, Caravela 1964; 2ª. ed.: João Pessoa, Editora Universitária/UFPB, 1978. [ Links ]

9 SILVA, José Nilton da (org.). Cartilha do folclore paraibano: escolas do 2º grau. João Pessoa, Secretaria da Educação e Cultura, 1988. [ Links ]

10 FRANÇA, Dinalva. Paraíba em ritmo de folclore. João Pessoa, Secretaria da Educação e Cultura do Estado da Paraíba, 1988. [ Links ]

11 OLIVEIRA Sobrinho, Reinaldo de. Variações do folclore na Paraíba. João Pessoa, s.d.

12 VILELA, José Aloisio. O coco de Alagoas. Maceió, Museu Théo Brandão; UFAL, 1980, p. 17 (grifos meus). [ Links ]

13 ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez (org.). São Paulo, Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976. [ Links ]

14 Estrada Nova. Instituto Nacional do Folclore/Funarte, janeiro de 1983. [ Links ]

15 ANDRADE, Mário de. Vida do cantador. Ed. crítica Raimunda de Brito Batista. Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Villa Rica, 1993. (Obras de Mário de Andrade, v. 25). [ Links ]

16 A brincadeira dos cocos. Direção de Elisa Maria Cabral. Coordenação da Pesquisa de Maria Ignez Novais Ayala. O vídeo recebeu o prêmio Banco do Nordeste do Brasil na XXIV Jornada Internacional de Cinema da Bahia. Salvador, 1997.

17 Esta citação, e as demais, encontram-se no acervo do LEO (Laboratório de Estudos da Oralidade). Foram obtidas em pesquisa de campo por diferentes integrantes do projeto entre 1992 e 1997.

Maria Ignez Novais Ayala é professora da Universidade Federal da Paraíba. Coordena a pesquisa do projeto integrado Literatura e memória cultural: fontes para o estudo da oralidade, do Laboratório de Estudos da Oralidade do Curso de Pós-Graduação em Letras da UFPB. O artigo aqui apresentado integra o livro ainda inédito por ela organizado: Os cocos da Paraíba: dança, poesia, alegria e devoção.

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