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Os cocos: uma manifestação cultural em três momentos do século XX (parte 2)

Mário de Andrade e os cocos

A documentação sobre os cocos reunida por Mário de Andrade no Nordeste entre dezembro de 1928 e fevereiro de 1929, em contato direto com os cantadores, complementada pela colaboração de amigos e alunos, antes e depois da viagem, constitui parte significativa de um livro sobre a música popular no Nordeste, Na pancada do ganzá, que ficou inacabado.

O convívio com os "tiradores de coco", em particular Chico Antônio (Pedro Velho, RN) e Odilon do Jacaré (Guarabira, PB), deixou impressões profundas neste escritor sensível à poética popular. Oneyda Alvarenga, em seu estudo introdutório a Os cocos de Mário de Andrade, observa:

"(...) Nos 245 Cocos reunidos neste livro, a expressão 'na pancada do ganzá', definidora da função do instrumento como apoio não só do ritmo, mas da invenção músico-poética em seu conjunto, aparece exclusivamente, e sempre heptassílabo completo, nos Cocos de Chico Antônio, que, se não for o dono dela, é sem dúvida a fonte do nome escolhido (...)" (3).

Lê-se no início da "Introdução" ao inacabado Na pancada do ganzá:

"Este não é um livro de ciência, evidentemente, é um livro de amor. Estarão sempre muito enganados os que vierem buscar nele a sistemática dos fatos musicais e poéticos do Nordeste. (...)

O que vale aqui é a documentação que o povo do Nordeste me forneceu. Procurei recolher esses documentos, da maneira, essa sim, mais cuidadosa, mais científica. Segui, na colheita folclórica, todos os conselhos e processos indicados pelos folcloristas bons. Ouvi o povo, aceitei o povo, não colaborei com o povo enquanto ele se revelava. De resto, trabalhos anteriores já tinham me dado certa prática desse pesadíssimo esforço de recolhedor (...).

É certo que, depois de realizada a colheita, ela dirigiu em grande parte o caminho das minhas leituras. E destas, surgiram as notas que guarnecem o livro. Mas porém com essas críticas, exemplos, variantes, ligações, não pretendi fazer obra de etnógrafo, nem mesmo de folclorista, que isso não sou: pretendi foi assuntar, atocaiar com mais garantias a namorada chegando. Se acaso algumas constâncias me interessaram mais, se alguma nova eu terei fixado, foi sempre por essa precisão que tem o amante verdadeiro, de conhecer a quem ama. Não tanto pra compreender o objeto amado em si mesmo, como pra se identificar com ele e milhormente poder servi-lo e gozar" (4).

Embora não se considere pesquisador, Mário de Andrade, neste texto citado como em outros escritos, sempre explicita o seu método de trabalho, reconhecendo em seu estudo procedimentos científicos, sempre valorizados por ele.

Pode-se afirmar que o material reunido por Mário de Andrade é, sem dúvida, o primeiro registro sobre os cocos feito com o rigor do método científico, mas conservando marcas da paixão, do carinho e das sensações do escritor, nunca ocultadas quando se tratava da cultura popular brasileira. Como ressalta Oneyda Alvarenga,

"(...) Mário de Andrade cercou de todas as garantias informativas tudo quanto fez: anotou lugares, datas, circunstâncias da pesquisa, observações sobre os informantes e a qualidade da colaboração deles; grafou melodias e textos com honestidade paciente, controlando seu trabalho por diversos meios e obtendo assim a maior exatidão atingível fora do registro fonográfico, que aliás, nos idos de 1928, não era recurso ao alcance dos nossos estudiosos e nem mesmo dos de outros países. Realmente, o fruto das pesquisas de Mário de Andrade constitui até hoje o maior e melhor acervo de música folclórica brasileira registrada por um pesquisador sozinho e por grafia musical direta" (5).

O registro dos cocos, iniciado por Mário de Andrade em 1928, ganhou continuidade dez anos depois com a Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, expedição iniciada em janeiro de 1938 e concluída em julho do mesmo ano. Os quatro pesquisadores da Missão – Luís Saia, Martin Braunwieser, Benedicto Pacheco e Antonio Ladeira – foram escolhidos por Mário de Andrade (na época, diretor do Departamento de Cultura e chefe da Divisão de Expansão Cultural) para fazer uma ampla documentação sobre danças e poética popular no Nordeste e Norte do país.

A equipe, altamente qualificada, recebeu orientação metodológica de Mário de Andrade; de Dina Dreyfus – então Dina Lévi-Strauss –, que havia ministrado o Curso de Etnografia (6) no Departamento de Cultura, ensinando, entre outras questões, a utilizar a fotografia, o filme e o fonógrafo como complemento importante às observações diretas em campo; além de instruções minuciosas de Oneyda Alvarenga, diretora da Discoteca Pública Municipal, para a organização do material coletado.

Munidos de aparelhagem de grande qualidade técnica e de formação segura para um desempenho com rigor científico, os integrantes da Missão visitaram mais de 30 localidades em pelo menos 20 cidades na Paraíba, onde permaneceram mais de dois meses: entre 23 de março (quando chegam três dos integrantes da Missão a João Pessoa) e 30 de maio de 1938. Além da Paraíba, visitaram algumas cidades de outros estados do Nordeste e do Norte: Pernambuco, Piauí, Ceará, Maranhão e Pará, reunindo uma quantidade fantástica de registros. Dentre as manifestações documentadas na Paraíba por meio de gravação de discos, fotos, filmes e anotações em cadernetas, estão muitos cocos encontrados em diferentes locais: João Pessoa, Patos, Pombal, Sousa, Itabaiana, Areia, São Francisco e Baía da Traição.

Álvaro Carlini, em Cante lá que gravam cá: Mário de Andrade e a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938, informa:

"As coletas da expedição no Estado da Paraíba superaram todas expectativas: cerca de 30 gêneros folclóricos musicais, mais de 700 melodias gravadas distribuídas em aproximadamente 100 discos de várias dimensões; mais de 500 fotografias; cerca de 10 filmes cinematográficos; uma grande quantidade de objetos de fatura popular (ex-votos de madeira, instrumentos musicais, vestimentas características, entre outros), além de uma infinidade de anotações escritas pelos componentes da equipe" (7).

O conhecimento do material reunido por Mário de Andrade e pelos pesquisadores da Missão de Pesquisas Folclóricas foi possível graças ao empenho de Oneyda Alvarenga, que dedicou mais de 20 anos de sua vida à organização dos inéditos de Mário de Andrade e do acervo da Missão e à divulgação de parte do que foi documentado. O acesso a essa documentação, iniciado há cinco anos, possibilitou-me a reunião de dados que, associados a informações e estudos de Mário de Andrade organizados por Oneyda Alvarenga em Os cocos e ao vasto acervo constituído por meio de pesquisa de campo realizada pela equipe sob minha coordenação, permitem bases seguras para o estudo comparativo dessa manifestação de música, dança e poesia por registros feitos na Paraíba em diferentes momentos do século XX.

No que se refere aos cocos colhidos pela Missão na Paraíba, pouca coisa foi divulgada. Os estudos de Mário de Andrade, a documentação reunida por ele e os registros feitos pela Missão de Pesquisas Folclóricas constituem, até o momento, a maior amostragem a que tive acesso sobre os cocos, só superada quantitativamente pelos registros efetuados por nossa equipe de pesquisadores.

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